Cachaça, rede e distância
Vida? Aquilo não era vida. Caminhava a passos rápidos para a mata. Levava o essencial: uma muda de roupa, a rede, dois litros de pinga e toda a economia escondida dos olhos da mulher.
Seu projeto? Viver sem rédeas. Solto. Livre. Sem contas a prestar. O dinheiro daria pra comprar e beber toda a cachaça que quisesse. Voltar seria a hora que bem entendesse, sem ninguém pra lhe dizer o que era certo ou errado.

Saudades? Não teria. Amava a liberdade por vir. Saudades de quê? Não queria relógio, trabalho, nada, ninguém. Passou no boteco, comprou pão e mortadela: o suficiente. Chegou ao seu destino à noitinha. Estava lá sem muitas mudanças. Estendeu a rede. Amontoou gravetos, galhos secos; pôs fogo; comeu e deitou-se. Ninguém para lhe cobrar hora, servicinho besta, banho, boca escovada. Meio copo de cachaça foi sua oração. Dormiu. Acordou no paraíso. Assim viveu por um mês.

Um dia, num repente, não que tivesse saudades, voltou para ver como a mulher estava vivendo sem ele. E não é que estava vivendo? Plantas molhadas, roupas no varal, quintal varrido, rádio ligado; estava como era antes. Não demorou para que ela aparecesse chacoalhando a toalha da mesa na porta, asseada, feliz. Voltou para a sua morada escondida na mata, mas cansara-se. Juntou a tralha, passou no córrego, lavou-se, vestiu-se e enveredou pelo caminho de volta.
A mulher o abraçaria e lhe poria um pratinho quente sobre a mesa com o seu copo d’água? Não pôs; não abraçou. Foi ao quarto, passou com a roupa para o tanque, lavou, estendeu, varreu, limpou, cantou e saiu sem banho. À noitinha a mulher voltou com cheiro de cachaça. Trouxe pão e mortadela. Comeu. Dormiu sem lavar a boca. De manhã fez um cigarro de palha. Cigarro? Ela não fumava! Fumava agora, ele via. Lavava a casa à noite, pela manhã ou à tarde; não tinha mais hora para aprontar a comida, varrer nem lavar.
Não se aproximavam, não se olhavam nos olhos, não se tocavam nem falavam. Cada um tinha a sua garrafa de pinga comprada no armazém. Ela também fizera as suas economias e assim passaram mais um mês desde a chegada do homem. Não havia ali resquícios de antigos hábitos, horários; cada um saía e voltava com as suas necessidades adquiridas. Um dia ele quis conversar, mas ela não conseguia parar sentada e desse modo seguiram por mais um mês.
Na ânsia de colocar de pé o seu lar, uma manhã ele abriu janelas e começou ele mesmo a lavar a casa. Lavou também a roupa dos dois, asseou-se, preparou comida; colocou um prato para a mulher que se sentou, comeu e foi dormir sem trocar-se; banho ele não a vira tomar nem na véspera. Na manhã seguinte o homem levou-a ao chuveiro para ver se a curava do porre que ainda tomara durante a noite. Abriu a janela para espantar o cheiro dos cigarros ali feitos e consumidos por ela.
Precisaram de ajuda de vizinhos e de médico para criarem ali alguma rotina saudável. Foi muito tempo para estabelecerem uma. Mas nunca conseguiram voltar a ser como antes; muita coisa havia mudado neles.
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Que isto não sirva de exemplo pra ninguém.
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No antigo site eu o classifiquei como conto > cotidiano
Este conto foi escrito em 01-12-2008, e o estou trazendo também para cá. Há comentários, e quero guardá-los de lembrança comigo e com meu leitor, porque são palavras encorajadoras do trabalho que realizo. Se eu fosse artista, viveria de aplausos, como vivem os artistas no final de suas apresentações. Como escritora, deixando um legado, transcrevo os comentários, para que, quando me vir sem estímulos, me lembre das pessoas que me incentivaram e prossiga.
Ana Maria: Neusa! Esse realmente não é um bom exemplo a ser seguido…coitada! Ela se cansou, mas bem que podia fazer coisa melhor por ela, né?! rsrs! Muito legal esse conto, muito claro, muito real… demais!!! Parabéns! Bjos
Bizu: Que belo trabalho…sem palavras…só elogios…
Edson dos Santos: Noooooooooooooosssa;;;Parece tudo bem real.
Sílvia Regina Costa Lima: alo poeta************** como vai, menina? Reinventar um tempo para o amor que passou, para si mesmo, para viver com dignidade, não é fácil… texto interessante em sua temática******* ********* Um beijo azul com saudades
GitanoAndaluz: triste, se bem que verdadeiro.