|| “Seu” Duquim, o Forneiro
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“Seu” Duquim, o Forneiro

“Seu” Duquim, o Forneiro

Ele chegava à cerâmica por volta das seis da tarde em dia de queimar o forno, como os empregados costumavam dizer. Chegava com um pequeno vidro de café e um pedaço de pão embrulhado para passar a noite à beira do fogo, mas já vinha com os olhos vidrados da pinga tomada ainda antes de sair de casa, com a conivência da mulher, dona Zina.

Joaquim era o nome dele, mas meu irmão, de três anos, simplificava-o para Duquim; era o que ele conseguia pronunciar em sua pouca idade.

Era um homem baixinho o ‘seu’ Joaquim, benzedor das galinhas doentes da vizinhança.

Depois da benzedura, contava-se, nenhuma galinha morria.

Benzia também as crianças que vinham acompanhadas das mães, para tirar o quebranto, as mocinhas vítimas de mau-olhado e inveja e adultos doentes de espinhela caída e outros males que se achegavam à casinha de grande quintal de terra e alguma planta, e eram logo diagnosticados, enquanto ele dispensava, cauteloso, os raminhos murchos usados para cada caso e cada pessoa atendida.

À noitinha, quando não benzia, chegava à cerâmica, e nós íamos encontrá-lo, eu e meus irmãos. Exalava o cheiro forte da cachaça barata e ria o seu riso de poucos dentes. Ria de tudo o que falávamos, ria só com a nossa presença. Acompanhávamos sua descida para colocar a lenha e esperávamos ansiosos até que ele voltava e se punha de cócoras, e nisso meu irmãozinho o imitava; ficávamos ouvindo suas histórias compridas, cheias de voltas, contadas devagar, até que nossa mãe nos vinha chamar.

Eu não consigo lembrar nenhuma história que ele contava, mas o seu jeito bom, sua cor morena, a gargalhada, o chapéu tirado na hora de benzer os seus crentes, dessas coisas eu não me esqueço e tenho saudades. Duquim, um homem bom nas memórias de minha infância.

P.S. Esta crônica foi escrita e publicada num outro site no qual eu escrevi por bons anos. Agora, como digo, venho trazendo devagar, mas definitivamente minhas publicações para este meu site.

Quando minha grande amiga e leitora Ana Maria C. Apolinário leu esse meu texto, ela comentou assim:

“Neusa, parece que essa história é real! A gente chega a se sentir dentro dela! Quando li o título, pensei que era o “seu” Duquim, companheiro da Margarida! rsrsrs”.

Na época eu devo ter explicado pessoalmente à Ana Maria que essa história era, sim, real, que fazia parte das minhas memórias de infância. Só que, explico agora, aqui escrevendo:

_ Sabe, Ana? É um texto literário. Quando a gente faz literatura, a gente pode pegar um pouco do mundo real e mixar com um pouco do irreal, no caso, o fictício. No caso aqui tem mais do mundo real mesmo. Talvez a criação esteja apenas no jeito de contar a história. E o nome do gato foi homenagem à memória do “seu” Duquim, forneiro…

E você, meu querido leitor, talvez esteja se perguntando: _ Então quem foram o Duquim e a Margarida que Ana mencionou em seu comentário? _ e eu lhe digo que Margarida e Duquim foram meus gatos. Se existir céu de gatos, eles devem estar lá.

Duquim era preto, um lindo gato preto. Talvez fosse filho até de Margarida.

Uma vez ela deu cria a lindos gatinhos que fizeram nossa alegria quando se esparramavam ou se encolhiam pela grama, para tomarem o sol da manhã junto de sua mãe.

Cresceram, e ela os mandou talvez para a faculdade, porque eu os via serem enxotados por ela, empurrados para fora de casa, para se tornarem gente, digo, gatos responsáveis.

Duquim, depois de estudar um pouco, voltou e ficou.

Margarida ganhou esse nome porque às vezes sumia. Quando aparecia, eu cantava a ela :

_ Apareceu a Margarida, olê, olê, olá …_ seu nome veio daí.

O Duquim também dava seu sumiço e voltava acabado. Eu dizia que era frentista, trabalhava no posto ali perto. Quando sumia, a gente em casa sabia que ele tinha ido pra gandaia.

Uma vez, porque ele sumira por mais tempo, meu marido disse que ele devia mesmo era ter ido pro saco.

Felizmente voltou. Não descuidei, e o levamos para ser castrado. Aí parava em casa; foi ficando lindo, e eu adorava ficar alisando suas patinhas. Acho que ele gostava do agrado. Era manhoso que só.

Confiamos Margarida, certa vez, em tempo de grande viagem, a uma moça. Quando voltamos a gata não nos foi devolvida. Disseram que sumira. Nunca mais a vimos.

E o Duquim, um dia em que fiz viagem menor, saiu para os passeios. Voltou vomitando. Eu não estava em casa. Deram-lhe veneno. Ele voltara para morrer em casa. Quando voltei já não vivia desde a noite ou madrugada, e o encontramos já sem vida.

Histórias, caro leitor. Reais como são essas palavras que uso para lhe contar e compor esse meu texto que vai aqui, como estava lá, como uma crônica.

Hoje foi um dia em que rememorei muitas coisas de um passado distante. Eu e minha diarista.

Impressionante como temos histórias parecidas; as dela, vividas cá em Minas; as minhas, em São Paulo, no interior, que deixei há bem ano e meio.

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